Deixem o ‘Desagradável’ Passar!

 Abaixo uma resenha minha abordando a reapresentação da minissérie Engraçadinha, que foi levada ao ar pelo canal Viva em Agosto/ início de Setembro. Mais do que falar  sobre a minissérie, eu faço algumas considerações a respeito da obra de Nelson Rodrigues, a qual passou por uma radical mudança de status dentro da literatura e dramaturgia – de produto de um autor ‘desagradável’ passou a ser encarada como uma espécie de clássico necessário. Vale a pena conferir!

O canal pago VIVA  reprisa a partir do dia vinte de Agosto a minissérie Engraçadinha, baseada no folhetim de Nelson Rodrigues Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados.A volta da minissérie, com texto de Leopoldo Serran e direção geral  de Denise Saraceni, integra a lista de homenagens ao centenário do escritor brasileiro.

Fonte: Memória da Globo

A trama aborda a vida da personagem, Engraçadinha, em dois momentos críticos da trajetória dela. Na primeira fase, vivendo na conservadora sociedade de Vitória (ES) dos anos 40, a personagem, então com dezoito anos, interpretada neste momento por Alessandra Negrini, está às voltas com a revelação que o pai, o deputado Dr. Arnaldo (Cláudio Corrêa e Castro) , faz a ela pouco antes de morrer. Silvio (Angelo Antônio), homem por quem sempre fora apaixonada e de quem carrega um filho, não era seu primo; mas sim seu irmão.

A imoralidade e perversão representadas pelo incesto são as únicas formas de barrar o desejo de Engraçadinha por Silvio, já que nem a iminência do casamento deste com Letícia ( Maria Luísa Mendonça), prima de ambos, ou até mesmo o próprio noivado dela com Zózimo (Pedro Paulo Rangel) foram suficientes.

Após a morte de Dr. Arnaldo, uma onda de boatos infundados toma conta de Vitória. De acordo com o falatório, instigado pelo promotor recém- chegado, Odorico Quintela (Paulo Betti); Engraçadinha teria tido um caso com o próprio pai, o qual, por não aguentar a pressão do desejo pela filha, acabara por cometer suicídio. É neste contexto que a moça, grávida do irmão e alvo da maledicência, resolve reatar seu compromisso com Zózimo, casar  e abandonar a capital capixaba rumo ao subúrbio do Rio de Janeiro.

Vinte anos depois dos eventos em Vitória, Engraçadinha, agora vivida por Cláudia Raia, transformou-se numa protestante fervorosa e rígida mãe de família com três filhos. Apesar do comedimento auto-imposto, ela acaba se reencontrando com o dragão do desejo; e desta vez ele tem duas cabeças.

Uma das cabeças é a de Luís Cláudio (Alexandre Borges), com quem inicia um tórrido caso de amor; e a outra é a de Letícia, a prima, que, logo no início da trama, confessa sua paixão por Engraçadinha e suplica para que esta se entregue a ela por uma noite.

Letícia, depois de duas décadas de afastamento, desembarca no Rio em busca da prima. Sua paixão por Engraçadinha não arrefeceu, e, num golpe de sorte, acaba descobrindo o adultério. A partir daí começa a chantagem : caso Engraçadinha não se entregue a ela, ou ofereça a filha de dezoito anos, Silene, em seu lugar, Letícia revelará a Durval, filho de Engraçadinha – que nutre um ciúmes doentio da mãe -, o caso desta com Luís Cláudio.

Está armado o conflito do melodrama rodriguiano, que contrasta a vida mundana do ‘homem médio’ com os embates mais renhidos da psique humana.

A grande força da minissérie é explorar a dualidade das personagens por intermédio dos pensamentos delas, seguindo a trilha proposta por Nelson Rodrigues. O artifício do voice over permite que o mundo íntimo  seja revelando ao espectador, libertando a trama do efeito redutor dos clichês. A fricção entre a righteous persona do espaço público e o obscuro mundo privado empresta atemporalidade e poder à obra.

A linguagem do melodrama talha a forma –  atuações teatralizadas;  cenários que remetem ao kitsch;  situações extremas puxadas por personagens quase caricaturais. Todos esses são elementos que emolduram e contextualizam  as cenas de sexo, nudez e violência.

Logo nos primeiros minutos, o espectador é informado de quais são as regras do jogo rodriguiano. Na primeira cena, durante o enterro de Dr. Arnaldo, Odorico Quintela toma a palavra, e apesar de um discurso  moralista, seus pensamentos cheios de lascívia preenchem o quadro. Neles, Odorico faz menção aos ‘peitinhos da Engraçadinha’, a qual já aparece no vídeo com os seios à mostra, revelando visualmente a fantasia do discursista.

A nudez é um aspecto que por muito tempo dificultou a transposição de Nelson Rodrigues a mídias ligadas ao grande público. No entanto, este não é um elemento tão insidioso e chocante quanto a insistência do autor em devassar os pensamentos mais torpes das personagens e contá-los  ao espectador. Bete Waldmann, livre docente da USP e coautora do livro Nelson Rodrigues, diz em entrevista à Ocupação Nelson Rodrigues, apoiada pelo Itaú Cultural, que a má-fama carregada pela obra rodriguiana por longos anos vinha exatamente do fato dele escancarar tudo aquilo que normalmente ficaria recalcado.

A televisão, mídia de massa por excelência, concedeu a Nelson Rodrigues uma espécie de laissez- passer durante os anos 90. Depois da exibição de Engraçadinha, em 1995, o Fantástico incluiu, no ano seguinte, episódios da antologia A vida como Ela É em sua grade – estes, aliás, vem sendo reapresentados desde vinte e três de Agosto pelo programa, também no intuito de prestar homenagem ao centenário.

Com a evolução e amadurecimento por que passou o Brasil nas últimas duas décadas, as homenagens a um escritor tão polêmico quanto Nelson Rodrigues podem ser entendidas como um ato de desagravo. O público brasileiro está cada vez mais disposto a  enxergar sem verniz a linha tênue entre violência e afeto; perversão e moralidade – aspectos que extravasam o inconsciente coletivo para ganhar forma em palcos e sets.

O País deixa, enfim, o ‘Desagradável’ passar.