Heróis, Anti-heróis e Ethos

Como uma mesma cena pode significar coisas totalmente diferentes? Leia abaixo a comparação que faço entre o western O homem que matou o facínora e a novela Roque Santeiro

Algumas obras têm a capacidade de sugerir em seu subtexto questões importantes para determinada coletividade. Neste texto,  abordarei a intertextualidade entre duas produções que revelam chaves de entendimento para a compreensão de dois ethos opostos. São elas  o filme O homem que matou o facínora (1962), do diretor norte- americano John Ford; e a novela brasileira Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes.

Ambas as obras estão visceralmente ligadas ao melodrama – a trama de aventura; mocinhos e bandidos; histórias de amor; os lances inverossímeis que dão maior apelo à narrativa. Os recursos extraídos do gênero visam a criar maior empatia com as plateias ao abordar temas com forte ressonância no imaginário coletivo. São aspectos como a vida nos grotões; o homem simples interposto entre  as forças da virtude e da corrupção, do progresso e do atraso.

Em O homem que matou o facínora (1962), de John Ford, a cisão entre o arcaico e o moderno é patente durante todo o filme, assim como o uso de figuras arquetípicas muito bem delineadas. A trama conta a história do Senador Ransom Stoddard (James Stewart), que acompanhado de sua mulher, Hallie (Vera Miles), volta ao Oeste para enterrar o agora desconhecido Tom Donaphin (John Wayne). Chegando à cidade de Shinbon, encontram as forças do progresso, levadas pela construção da ferrovia,  muito bem instaladas num lugar que, décadas antes, fora o exemplo perfeito da selvageria da frontier.

Instigado pelo editor do jornal local, Stoddard rememora a antiga Shinbon, refém da violência do bando de malfeitores comandado por Liberty Valence, o facínora; assolada pelo desconhecimento da Lei que rege a América avançada – da qual Stoddard, por ser advogado, é símbolo -, e presa à pouca instrução do povo iletrado.

Logo na chegada a Shinbon, Stoddard é roubado e surrado por Liberty Valence. Apesar de furioso e ultrajado, ele não pensa em ir embora da cidade ou, até mesmo, tentar matar Valence; ao contrário, o advogado se mantém firme aos preceitos e à ética que representa e por que luta – ele quer colocar o facínora na prisão.

Interpõe-se na luta entre mocinho e bandido a figura de Tom Daunaphin, homem que,  não obstante  manejar os costumes rudes do Oeste, aparece na tela como uma  representação de uma cidade que vai perdendo sua ligação com os  valores comunitários. Todos os habitantes de Shinbon se envolvem  cada vez com as ideias de Stoddard, ponta de lança da civilização,  e promotor de valores como legalidade e educação.

O encontro entre estes três arquétipos ocorre num pretenso duelo entre Stoddard e Valence. Aquele, revoltado com mais um ato selvagem  deste, dispõe-se a infringir sua lógica e empunhar uma arma para vencer o bandoleiro. O facínora é morto, mas, no desfecho do filme, descobrimos que quem o matou não foi Ransom Stoddard; mas sim Tom Daunaphin.

É neste ponto que a análise do filme torna-se interessante. Por mais que a força do progresso tenha a  recompensa dela, inclusive sendo liberada da culpa de ter vencido por meio de um ato ‘selvagem’, John Ford parece atribuir ao personagem de Daunaphin, representante dos velhos valores, mais características positivas, como coragem e compromisso com a comunidade, do que a Stoddard.

A novela brasileira Roque Santeiro (1985), escrita por Dias Gomes, aproxima-se em certos aspectos do universo de John Ford, focalizando a cidade de Asa Branca, que como Shinbon, vive presa às forças do atraso – representadas pelo coronelismo;  corrupção e messianismo. Este último é o aspecto que oferece conflito à trama, destacando o problema de uma cidade que, além de venerar, vive em função de um santo que nunca morreu, Roque Santeiro (José Wilker), o qual, ao contrário do que todos pensam,  fugiu da cidade roubando dinheiro do coronel Sinhozinho Malta (Lima Duarte), e deixando como culpado de sua pretensa morte o bandido Navalhada (Oswaldo Loureiro).

Este pequeno resumo já oferece um forte contraponto entre as obras em questão. Se no filme de Ford duas figuras heroicas despontam, sendo, para usar nomenclatura do crítico teatral Anatol Rosenfeld, Ramsom Stoddard – um perfeito herói operativo, que usa seus valores para operar mudanças – e Tom Daunaphin, um exemplo de herói representativo, ou seja, representa algo, mas é passivo frente aos acontecimentos; na trama de Dias Gomes o que vemos é um  anti-herói que, muito embora volte à cidade de Asa Branca para reparar seus erros e tentar acabar com o mito de Roque Santeiro,  é marcado por um caráter falho.

O capítulo final da novela intensifica o problema da linha tênue entre virtude e corrupção, que dá as bases para um sistema de recompensas muito diverso ao do western. Retomando a cena chave do filme norte-americano descrita acima, Dias Gomes contrapõe três personagens que se filiam muito imperfeitamente com aquilo que deveriam representar – Navalhada é um ex-facínora, porque se abriu à palavra de Deus na cadeia; Luís Roque é um homem mulherengo e, em certos momentos, revanchista; e Sinhozinho Malta  um coronel que alterna força e sensibilidade.

Veja este vídeo com a junção das duas obras:

 

O resultado final deste encontro é a morte de Navalhada, que, como no western, é abatido pelo homem mais filiado à terra, neste caso Sinhozinho Malta. Se o filme de Ford considera, mesmo que com certa amargura, o progresso como o ganhador do embate; o folhetim brasileiro recompensa o status quo, uma vez que Luís Roque, vivendo o drama de consciência de achar ter matado um homem, vai embora de Asa Branca sem ter esclarecido a população.

Como conclusão, podemos perceber que o ethos norte-americano está fortemente vinculado ao espírito aventureiro de seu povo e à aceitação da destruição criativa gerada pelo progresso; ao passo que, na visão de Dias Gomes, o  brasileiro parece mais alinhado ao espírito conciliatório e à manutenção do status quo.